sábado, 20 de março de 2010

Em defesa de Kill Bill (parte 2): O PULP AINDA POLPA...

O Born To Lose tem muitos blogs parceiros, dentre eles O Coringa. O texto que traz esta nova postagem é referente a uma discussão iniciada alguns anos atras sobre o filme de Quentin Tarantino Kill Bill. Para quem não acompanhou a discussão aqui pelo blog, pode procurar a postagem da primeira parte da discussão em nossos arquivos.
Fiquem com a contribuiçao do Coringa, tirem suas próprias conclusões e participem desta discussão.

Recomendamos aos nossos leitores que acessem o blog O Coringa e conheçam as posições desta figura misteriosa sobre o mundo do cinema e da arte. O link é: http://cartasdocoringa.blogspot.com



Contribuição do Coringa ao amigo mineiro…

Uai sô, sério?

(Why so serious?)[1]

Este texto chega com um pouco de atraso, e compõe a segunda parte da defesa de Kill Bill. Foi-me solicitado já há algum tempo e há quase um ano estou enrolando para escrevê-lo. O texto aqui presente é oriundo de conversas e discussões entre amigos, nas quais as opiniões por mim expressas em muitos casos iam ao encontro e se completavam com as opiniões expressas pelo autor desse blog. Em muitas das coisas ditas por ele durante nossas conversas, via como se as minhas próprias idéias me estivessem sendo reveladas, e não me admiraria se ele dissesse o mesmo em relação às minhas opiniões. Ao finalizar o texto percebi que ambos expressam, de maneira diferente, opiniões muito próximas. O fato é que, assim como Inácio (como ele é conhecido na Bahia) não considero que Kill Bill possa ser reduzido aos filmes pré-fabricados de Hollywood. Como se sabe, Tarantino é um aficcionado pela literatura pulp, chegando inclusive a lhe dedicar um filme (Pulp Fiction). Este tipo de literatura possui algumas características próprias e influenciou muita coisa na cultura americana, diria, inclusive, que constitui a raiz de uma espécie de mitologia pop americana. O pulp é uma espécie de literatura de cordel americana, ou seja, são histórias contadas em linguagem acessível e impressas da maneira mais barata possível. Tanto o pulp quanto o cordel adquiriram suas nomenclaturas a partir de características de confecção. O cordel adquiriu este nome por conta das páginas impressas serem colocadas para secarem em cordas estendidas, e o pulp por conta das páginas utilizadas serem confeccionadas da polpa (pulp) das árvores. Basicamente a literatura pulp consistia em contar histórias curtas com muita ação e mistério, criando personagens com capacidades fora do comum, e cuja origem em muitos casos era rodeada de segredos. Sempre que possível o desenrolar da história deveria ser resolvido no episódio seguinte, levando o leitor a adquirir a próxima edição. O público alvo desse tipo de literatura eram trabalhadores com baixa renda, os quais, evidentemente, não poderiam pagar muito por um exemplar e também não possuíam muito tempo ocioso para a leitura. Isso faz com que as características básicas da literatura pulp sejam a confecção barata, o diálogo rápido e sem se perder muito em divagações, a linguagem fácil e acessível ao grande público, a presença de pessoas com capacidades extraordinárias, e em alguns casos as histórias seqüenciadas. Percebemos o desenrolar da cultura pulp nos romances policiais, nas HQs (que mais tarde influenciaram significativamente a Pop Art), nos super-heróis, no filme de ação e no bang-bang. Isso lembra alguma coisa? Lembra Kill Bill.

(i)

O primeiro ponto a respeito do qual gostaria de comentar refere-se à presença constante de referências constantes às grandes marcas comerciais no filme de Tarantino, tais como o tênis Puma, a espada Hatori Hanzo, ou as motos de não sei que espécie, e outras referências que constantemente aparecem em seus filmes. Aqui Tarantino se utiliza de uma técnica cara à Pop Art, qual seja, a utilização de ícones do mass-media como matéria prima a ser transformada em linguagem artística. Um bom exemplo disso são duas obras de Caetano Veloso, Superbacana e Alegria, alegria, ambas com ampla referência a ícones do mass-media e, apesar disso, poéticas. Caetano conhecia e era um adorador do trabalho de Andy Warhol (pai da Pop Art), de modo que não foi casual a utilização dessa técnica em sua obra. Assim como a literatura pulp, a Pop Art pretendia atingir as massas com uma linguagem acessível. A questão é análoga à da literatura policial e da literatura de cordel no Brasil. As histórias deveriam ser construídas utilizando-se de uma linguagem acessível. A sacada da Pop Art foi se utilizar de ícones que estavam presentes na mídia (sejam eles comerciais ou não). Isso não constitui uma apologia ao consumo. Quando Caetano compôs Alegria, alegria e inseriu pela primeira vez a coca-cola na letra de uma canção brasileira ele não estava fazendo apologia à coca-cola. Somente um pseudo revolucionário cego (e burro) poderia enxergar nessa alusão uma apologia ao consumo. Trata-se somente de utilizar uma referência conhecida de todos. A coca-cola, aí, é ressiginificada e aparece como uma alusão à falta de preocupação e à descontração (“eu tomo uma coca-cola / ela pensa em casamento”). O que Tarantino faz não é muito diferente disso. Tarantino se utiliza de grandes marcas precisamente porque essas são conhecidas do grande público, e a universalidade sempre foi uma das características da arte. Os artistas que se prezam pretendem compartilhar um sentimento através de sua obra e não apenas satisfazer o próprio ego ou o ego de seu papai que queria ter um filho artista. Daí porque não somente Tarantino, mas todos os artistas oriundos da Pop Art (que não é equivalente de arte comercial ou de arte pré-fabricada), se utilizam de ícones do mass-media em suas obras, ícones que justamente por serem conhecidos do grande público tornam a obra mais acessível. Os ícones do mass-media, aqui, são a matéria prima a ser transformada em linguagem artística. Tal qual a coca-cola na música de Caetano, esses ícones expressam outra coisa além de si mesmo, e penso que não é diferente com Tarantino. É claro que a novela da Globo, o filme da Globo – e o de Hollywood também – fazem constantes referências a marcas comerciais, com a única diferença de que a referência é feita de maneira completamente descarada e sem nenhum nexo com o restante da obra, e além disso não é atribuído um novo significado à marca. Por essas razões considero que não dá pra chamar a obra de Tarantino de comercial e pré-fabricada. Utilizar-se de referências comerciais como matéria para a linguagem artística não é o mesmo que fazer um filme comercial e inartístico. Há uma diferença sutil e determinante quando falamos de uma marca conhecida para através dela dizermos outra coisa (como na música de Caetano) e quando utilizamos dela para fazer propaganda (como uma citação forçada das marcas nas novelas da Globo). No primeiro caso novos significados são criados, no segundo não ocorre senão a redundância daquilo que seria desnecessário dizer.

(ii)

O outro ponto que gostaria de abordar é com relação aos filmes orientais classe B, aos quais Tarantino remete em Kill Bill. O diretor se utiliza em grande parte dos fiascos deste cinema, como o sangue esguichando do pescoço decepado, o sorriso do mestre não sei o quê, a luta de uma única pessoa contra um exército, a utilização explícita do cenário de papelão ao fundo, a interpretação forçada, etc. etc. etc. O mérito de Tarantino é estilizar os erros do cinema classe B. Explico: estes diretores procuravam reproduzir Hollywood e não conseguiam, e suas falhas não eram obtidas intencionalmente, mas por incompetência ou falta de recursos mesmo; ao contrário, Tarantino parte destas falhas por princípio.

Tarantino coloca em evidência precisamente os pontos em que o cinema classe B foge à Hollywood, isto é, os seus erros. Dito de outra maneira, Tarantino ressalta precisamente a incapacidade do cinema oriental reproduzir Hollywood, e nisto revela a potência crítica contida neste. Tal qual uma alma nobre não consegue reproduzir os hábitos de uma alma vil sem se tornar ridícula, assim também o cinema oriental não consegue reproduzir os “efeitos especiais” do cinema Hollywoodiano. Mas o principal fato em questão é que a aparência tosca e mal acabada é característica própria do gênero pulp. Não é de se estranhar se um diretor de cinema aficcionado por literatura pulp estilizasse a parte “tosca” do cinema B oriental. O exagero também é uma das características mais marcantes da literatura pulp e dos quadrinhos, cujos heróis são seres com capacidades fora do comum (alguma semelhança com os heróis do bang bang?). Aliás, o exagerado e o hiperbólico é comum à toda arte vigorosa, principalmente quando esta se encontra mais crua e em seus primórdios. Quando digo “hiperbólico” estou me referindo à ampliação de determinados caracteres da realidade em um todo harmônico, e não ao melodramático ou ao megalomaníaco simplesmente. Vejam-se as grandes epopéias, tragédias e comédias, todas elas se valem de um sentido hiperbólico de determinados caracteres da realidade. Veja-se a ênfase de Homero colocada sobre os atos mais triviais de seus heróis, cada atar de sandálias de Telêmaco é enunciado como se fosse colocado um zoom sobre os pés do personagem, gerando a sensação de grandiosidade do mesmo. Evidentemente, Tarantino não é Homero, mas a questão é análoga. A vingança da noiva em Kill Bill não é senão uma explosão da violência vista sobre a ótica desse hiperbolismo, somente que a ênfase é dada sobre o sentimento da violência e não sobre o personagem. A luta contra os Oitenta Loucos não é senão um dos aspectos desse hiperbolismo. Tarantino capta algo que está presente de forma germinal e mal-acabada nos filmes B e lhes confere uma forma própria, precisamente porque se desliga da maneira pseudo-realista com a qual os filmes de Hollywood pretendem garantir a sua veracidade. A veracidade da arte é obtida mediante a unicidade e a harmonia da composição, e não por verossimilhança com a realidade. Os “efeitos especiais” de Hollywood não são senão a prova desse pseudo-realismo e o atestado de incompetência hollywoodiano em lidar com a hipérbole e a metáfora, tais efeitos estão para o cinema assim como o deus ex machine estava para o teatro grego: uma inovação técnica que muitas vezes esconde uma incapacidade poética. Em alguns casos, o cinema classe B oriental sabe lidar com esse hiperbolismo melhor que Hollywood. O problema com esse tipo de cinema é justamente tentar ser uma cópia de Hollywood sem possuir os mesmos recursos financeiros e, principalmente, negligenciando a sua potência própria e sua idiossincrasia em relação à Hollywood. Idiossincrasia esta que foi percebida por Tarantino, o qual lhe conferiu um modo de expressão adequado. Daí porque Kill Bill possui uma plasticidade e uma potência imagética que não reproduz as cenas típicas de Hollywood, mas que também não ocorre nos filmes classe B.

Se por um lado Kill Bill não pode ser igualado aos filmes de Hollywood, por outro lado, também não pode ser igualado aos filmes classe B. A diferença entre o cinema B e Tarantino, se dá porque no primeiro estes erros são falhas em relação à Hollywood, e no segundo porque estes erros são obtidos intencionalmente. Daí poder apontar uma diferença, em princípio, entre eles. Em Kill Bill, é como se o cinema classe B tomasse consciência de sua própria capacidade e de sua irredutibilidade em relação à Hollywood. Por quê as cenas de Kill Bill nos agradam? Não seria porque elas estão estilizadas? Ou porquê o autor utilizou os erros do cinema B como princípio, e por isso pôde estiliza-las? Não seria este o fato que nos faz admirar Kill Bill, e não admirar as obras que Kill Bill supostamente imita? E não se dirá que Tarantino está reproduzindo Hollywood, precisamente porque sua obra estiliza aquilo que não se encaixa na regra hollywoodiana, porque esta obra busca pela incapacidade de recriar os efeitos especiais de Hollywood. Algumas cenas extremamente clichês às quais torceríamos o nariz constituem precisamente um dos méritos de Kill Bill. E, diga-se de passagem, o mérito do filme de Tarantino justamente não é o “efeito especial”. Como já foi dito no primeiro texto, o diretor conseguiu com grande mérito entrelaçar coisas distintas como a estética pop, as histórias de samurai e máfia japonesa, os HQs e seus heróis e o bang bang. Tudo isso num roteiro coeso e com cenas, diálogos, músicas e fotografia harmônicas. Fazer coabitar coisas tão distintas como estas num todo harmônico, por si só, já basta para elogiar Kill Bill. Como ele pôde conseguir isso? Utilizando justamente a literatura pulp, a qual, como já foi dito, constitui um ponto de encontro entre todas essas vertentes. O filme não é um mero recorte de outros filmes à la “Todo mundo em pânico” precisamente por conta da unidade, coesão e harmonia nele encontradas, o que não ocorre em “Todo mundo em pânico”, e nem mesmo na maioria das obras de Hollywood, cuja fraqueza das cenas e excesso de elementos superficiais à trama é gritante. O estilo de Tarantino é pulp-fiction: a literatura violenta, com diálogos curtos, rápidos, de inteligência sagaz, com poucos elementos e, sobretudo, com uma trama bem amarrada; heróis com suas lendas e histórias acerca de seu nascimento, com suas presenças misteriosas também são elementos de influência marcadamente pulp. Até mesmo a remissão da solução do enredo para um segundo volume é algo comum na literatura pulp. O que Tarantino faz é vestir o cinema B com roupas adequadas, o que até então não havia sido feito por conta da tendência em reproduzir Hollywood. Tarantino traz à tona a literatura pulp em seu caráter mais cru, sem divagações teóricas, e conferindo vida aos clichês e lugares comuns da literatura pulp. Algo bastante diferente do cinema monótono, requentado, a-poético, confeitado, pseudo-realista e enfeitado de Hollywood, um cinema cujo uso de “efeitos especiais” e incapacidade de se desvencilhar do realismo revela a sua incapacidade em se afirmar enquanto arte.

Abraços desse anti-herói dos quadrinhos, aqui travestido em comentador de arte: o Coringa


[1] Trocadilho extraído da Desciclopédia.