sábado, 5 de junho de 2010

Relato de uma morte que vive

















Hoje caminha. Assim como ontem, assim como amanhã. Dias úmidos ou quentes, ruas claras ou escuras, não importa; seus olhos olham, mas não vêem. Respira o ar, mas não o sente; beija os lábios da mulher e sua pulsação continua estável. Os traços de seu rosto são os mesmos sempre. Não sabe se teve dias ou se está preso ao mesmo dia, que se repete eternamente.

Em sua direção, na direção oposta, do lado esquerdo, do lado direito, sobre sua cabeça, abaixo de seus pés: corpos. Corpos de carne, corpos de metal, corpos de vidro, corpos de terra, corpos de aço, corpos de madeira. Até corpos sem corpos.

Suor saindo de seus poros escorrega pela superfície do seu rosto. Caem ao chão ou sobre os braços da mulher. Existem flores e nas flores existe o amarelo, o verde, o vermelho, o azul e o preto. Ainda existe vida deste lado! Entretanto, seus olhos não piscam, estão presos a imagens fixas, sentimentos diamantes, que imploram pelo cinza de todas as cinzas. A isso chama vida.

Acredita viver. Diante de seus olhos o fardo, o peso, a medida, uma tonelada. Acredita em ganhar e perder, morrer e viver, cagar e mijar, ser bom ou mal (acho que até mesmo acredita em ser bom e mal). Ainda não conseguiu chorar, só consegue rir. Concebe as coisas dentro de uma escala evolutiva: do mal ao bom, do errado ao certo, do triste ao feliz, do doentio ao saudável, da escravidão à liberdade, do amor ao ódio. Outras vezes as concebe dentro de uma escala hierárquica: primeiro o bom e depois o mal, primeiro o certo e depois o errado, primeiro a felicidade e depois a tristeza, primeiro a saúde e depois a doença, primeiro a liberdade e depois a escravidão, primeiro o amor e depois o ódio. Por enquanto não odiou, não amou, não sofreu, não escolheu, não desejou.

Certa vez contaram-lhe que a chama é quente e queima a ponta dos dedos. Disseram-lhe que há flores nos jardins e que nelas podemos aspirar fragrâncias diversas. Até hoje não colocou a mão na chama, muito menos se abaixou para respirar o perfume dos jardins.

Nunca o julgaram louco. Na verdade, alguns o chamaram de mestre, outros de experiente; mas inconseqüente, desmedido ou aprendiz, isso nunca.

O pior é que nada disso ele sabe. Pensa estar acordado em seu sono profundo. Nada disso se quer relampejou em seu espírito. São seus olhos que contam esse sentimento ou vivemos num palácio de espelhos?

Um comentário:

  1. Fantástico! O reflexo se evita negando a si mesmo a semelhança no próximo e passa a acreditar viver entre desiguais, gestos seus nunca são seus na face alheia, e toda suspeita que possa tramar o recolhecimento de si, cria o preconceito da igualdade.

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