quarta-feira, 13 de março de 2013

O lado mais sombrio de A Hora mais Escura (Zero Dark Thirty)




Em 2012 Hollywood produziu dois filmes cujo tema é a política externa dos Estados Unidos e o papel desempenhado pela CIA nesses assuntos. Aos mais desconfiados, coloco-me entre eles, pode parecer que o propósito dos dois filmes seja justificar os métodos investigativos utilizados pela CIA com o suposto objetivo de defender a nação, neste caso os EUA, dos terroristas. Este é um traço marcante em Zero Dark Thirty (A Hora mais Escura), a ideia de que os EUA são alvo de todos os terroristas do mundo, vítimas dos fundamentalistas do Oriente Médio. Não há como negar o maniqueísmo presente no filme, em nenhum momento as ações praticadas pelos militares e agentes norte americanos são colocadas em dúvida, mesmo quanto à prática da tortura, sempre são os mocinhos norte americanos contra os bandidos do oriente médio.


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Ao construir uma história em que os americanos são os mocinhos e os mulçumanos, comandados por Osama Bin Laden, são os bandidos, Kathryn Bigelow deixa de fazer um filme político, no sentido de expor fatos que trazem à luz o modo como a CIA conduz suas investigações, para fazer mera propaganda pró-EUA, como acreditam ter feito o filme alguns críticos. A reprodução dessa estrutura tão comum aos simplórios filmes de ação tais como Rambo II e Rambo III, só pra ficar em exemplos mais conhecidos, joga por terra argumentos a favor do filme tais como o do colunista da Folha de São Paulo André Barcinski, que em sua coluna argumenta que as críticas sofridas pelo filme ao redor do mundo, inclusive dentro dos próprios EUA, que o acusam de apologista da tortura não tem fundamento. Segundo Barcinski, o fato do filme mostrar a “abominável prática da tortura” seria suficiente para fazer ruir tais críticas, uma vez que expõe o caráter desumano da tortura. Num dos trechos ironiza: “O que as pessoas queriam? Alguma cena em que um funcionário da CIA pedisse desculpas a um torturado? Algum torturador chorando de arrependimento? Isso seria, a meu ver, irreal e apelativo, e tiraria muito do poder de denúncia do filme”
Barcinski não entende que não há caráter de denúncia a ser tirado do filme, pois ela não existe. O filme simplesmente procura legitimar os métodos empregados pelos mocinhos, os americanos, a fim de combater o Mau, encarnado no Mundo Islâmico e propagado ao redor do mundo através de atos terroristas. Lembremos que em nome do Bem os EUA invadiram o Vietnam, em nome do Bem, da Democracia e da Paz, “conquistas” do Ocidente, liderado pelos EUA, foi o motivo usado por George W. Bush para invadir o Iraque e o Afeganistão. Por favor, onde está a denúncia? 
Barcinski diz que foi através da tortura que se alcançou uma informação relevante sobre o paradeiro de Bin Laden. Ora, seria muito bom se assim como é mostrado no filme apenas terroristas autênticos tivessem sido torturados. Contudo, as prisões militares norte-americanas ao redor do mundo estão cheias de prisioneiros, a maior parte suspeitos de serem terroristas, classificados como tal por se encaixarem no perfil inimigo. Quantas torturas os agentes da CIA não realizaram em pessoas inocentes? 
Insisto que a intenção do filme é dar um valor positivo a uma prática que em nossa sociedade possui um valor negativo. Sabemos que os valores morais de uma sociedade podem ser mudados, pois não são necessários, mas contingentes. Basta nos perguntarmos portanto se em alguma condição, a tortura pode ser um valor moralmente positivo, ou seja, bom. O filme mostra que é moralmente bom torturar pessoas se essas forem terroristas e se a tortura permitir que novos ataques sejam realizados. É disso que se trata A Hora Mais Escura. 
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Vamos tentar entender porque Zero Dark Thirty (A Hora mais Escura) não passa de mera propaganda ideológica, que procura legitimar as ações dos EUA praticadas no Oriente Médio, principalmente no Afeganistão e no Iraque, países ocupados pelas forças militares desse país. Logo no início do filme a diretora procura sensibilizar o público quanto à causa dos EUA. A tela está escura e ao fundo ouve-se a voz de uma mulher que pede socorro enquanto as Torres Gêmeas são consumidas pelas chamas. A primeira cena passa-se dois anos após os atentados do 11 de setembro. Em uma prisão secreta da CIA no Oriente Médio está ocorrendo uma sessão de brutal tortura com o objetivo de saber quando e onde ocorrerá o próximo ataque da Al Qaeda. Qual poderia ser a ligação entre essa cena e o áudio das vozes pedindo ajuda no World Trade Center? Não é nenhum delírio defender que essa sequencia inicial de cenas busca mostrar a necessidade de eliminar os líderes da Al Qaeda, pois trata-se da principal organização terrorista que ameaça a segurança dos EUA, portando do mundo, caso algo não seja feito. Isso porque esta rede terrorista é liderada pelo único homem que foi capaz de orquestrar um ataque ao país mais poderoso do mundo, até então jamais alvejado por uma nação estrangeira em seu próprio solo.
 Esse elemento persuasivo presente no início do filme certamente tem um efeito muito forte sobre o público americano. No acima citado colunista da Folha de São Paulo, muito longe de ser um americano, tal efeito foi instantâneo! Podemos perceber isso no seguinte trecho de seu texto que analisa o filme:
Explicando: no filme, são mostradas várias sessões de “waterboarding”, um método pavoroso de tortura por afogamento. Foi numa dessas sessões que os norte-americanos ouviram, pela primeira vez, o nome de um importante membro da Al Qaeda, que acabaria por levá-los a Bin Laden.
Os trechos em negrito mostram a força persuasiva do filme. É justamente esse o objetivo do filme, mostrar que a tortura, embora um método “pavoroso de tortura”, levou à resultados bons, pois permitiu chegar à membros da Al-Qaeda próximos à Bin Laden, além claro de no final da “missão” levar ao resultado principal: a morte de Osama Bin Laden. Se a estratégia funcionou com um brasileiro, imagina o impacto sobre a população dos EUA. Seguiremos mostrando
Rapidamente a tese tão cara aos republicanos (lembremos que os EUA estavam sobre o governo de George W. Bush) de que é preciso fazer o que for preciso a fim de proteger vidas americanas, inclusive lançar mão de meios hediondos como a tortura, recebe adesão dos espectadores. Temos então o primeiro passo no sentido de legitimar qualquer ação feita pelos EUA com o objetivo de salvaguardar seu povo e destruir o inimigo.
A partir daí temos uma torrente de argumentos grotescos que defendem os métodos empregados pelos americanos na luta contra o terror. O mais grotesco de todos ocorre ainda na primeira cena. Homens de preto auxiliam um agente da CIA a interrogar um preso, supostamente membro da Al Qaeda. Todos estão encapuzados a não ser o interrogador/torturador e a agente Maya que a certa distancia assiste ao interrogatório/tortura. Após uma sessão de punições, dentre elas o famigerado waterboarding, causadas pela falta de colaboração do prisioneiro, o interrogador/torturador se retira da sala, deixando a agente Maya a sós com o prisioneiro. Ao pedir ajuda à agente, o prisioneiro recebe a seguinte resposta: “Você pode se ajudar dizendo a verdade.” Surpreendente! Maya responsabiliza o prisioneiro pela tortura recebida, ou seja, o prisioneiro é culpado por estar sendo torturado. Nesse momento mostram-se as mãos limpas dos americanos quanto à tortura praticada em suas prisões, pois, basta dizer a verdade para que não haja tortura. Embora incomodada com a violência da tortura que presencia a agente Maya não questiona a prática em momento algum, são ossos do ofício, um mal necessário, um meio, que pode ser abominável e desumano, mas que levará a um fim, que consiste num bem mais elevado: a eliminação da causa de todo terror ao redor do mundo, Osama Bin Laden.
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A primeira sessão de tortura comandada pela agente mostra uma Maya mais fria, já adaptada a ter na tortura um instrumento eficaz na extração de informações dos prisioneiros. Ordena a execução dos castigos sem o menor vacilo, sua consciência moral está bem solidificada. Essa transformação do aspecto psicológico da personagem é importante na medida em que revela a compreensão da agente de que é preciso acabar com as ações terroristas, ocorrendo a todo instante ao redor do mundo, tendo nela e seus companheiros os únicos em condições de dar um fim à onda de terror deflagrada pela Al Qaeda com os atentados do 11/09.
Outro problema grave em Zero Dark Thirty (A Hora mais Escura) consiste na falta das datas em que se passam algumas cenas. Uma cena importante no filme refere-se a um momento em que os agentes da CIA estão conversando e ao fundo a tv transmite uma entrevista com Barack Obama. Não fica claro se era uma entrevista do Obama como presidente ou candidato que concorre ao seu primeiro mandato. No trecho da entrevista podemos ouvir Obama dizer o seguinte: “Já disse, repetidamente, que os EUA não torturam. E me certificarei de que não torturemos. Isso é parte de um esforço para reconquistar o prestígio moral dos EUA no mundo”.
Outro ponto forte do filme é o encontro marcado com um suposto informante infiltrado no alto escalão da Al Qaeda. O contato, supostamente um médico jordaniano, quer marcar um encontro com os agentes da CIA com o objetivo de fornecer informações sobre as próximas ações da Al Qaeda. Estranhamente a CIA aceita se encontrar com o medico em uma base militar americana localizada no Afeganistão. O veículo que transporta o informante, graças às solicitações insistentes da agente designada para o interrogatório, recebe permissão para entrar sem qualquer intervenção dos militares, quebrando os protocolos de segurança da base. Resultado: uma explosão que mata os agentes da CIA presentes e os militares americanos próximos ao veículo.
Esse fato chega aos ouvidos da agente Maya juntamente com a notícia de que uma pista que estava seguindo mostrou-se falsa. Maya fica profundamente abatida, contudo o efeito causado pelas notícias a levam a uma superação e a buscar forças para continuar sua missão. Isso fica claro quando um outro agente pergunta a ela o que irá fazer agora, com essas notícias caídas sobre sua cabeça. Maya então olha para seu interlocutor e tal qual um astro de filme de ação no momento em que decide vingar sua família diz a seguinte frase: “Vou encontrar todos os envolvidos nessa operação e depois irei matar Osama Bin Laden!”. Deparamo-nos com algo mais que solidificado no imaginário americano: a imagem do herói que chama para si a responsabilidade de salvar, literalmente, a pátria. O Justiceiro Solitário, imagem que reforça a importância superior do indivíduo sobre o grupo, ideia tão cara à politica neo-liberal dos EUA. Juntamente com a imagem de sofrimento das pessoas presas nas Torres Gêmeas que ao telefone pedem socorro, temos agora outra imagem usada para sensibilizar o público.
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Outra fala importante de Maya ocorre no momento em que ela percebe haver uma falha referente a morte de um alvo, potencialmente uma chave para encontrar Bin Laden. Buscando de todas as formas conseguir ajuda para monitorar uma nova pista Maya revela ao seu interlocutor acreditar ser uma predestinada! A que? você pode perguntar, simplesmente seu destino é capturar Osama Bin Laden. “Vários amigos meus tentaram realizar essa missão e morreram. Acredito que fui poupada pra conseguir concretizá-la!” Chegamos próximo ao fundo do poço com esse pieguismo de Maya. O apelo ao sobrenatural, à fé cristã, um dos pilares da América. Caso os outros artifícios tenham falhado em colocar o telespectador do lado da CIA e do governo americano provavelmente com mais essa prova de virtuosismo e busca cega pelo cumprimento do dever da agente Maya, a maioria do público deve estar disposta a aplaudir de pé a superação dessa heroína e a captura do inimigo público numero um da América.
Daí fica fácil prever o final do filme, Maya cumpre a missão, não sem passar por cima de todos os obstáculos que a impediriam de concretizar seu objetivo, inclusive passar por cima da autoridade de seu superior. Essa é uma parte importante do filme. Para boa parte dos CIA a busca por Osama Bin Laden era considerada inútil, pois se o líder terrorista ainda estivesse vivo, estaria incomunicável, ou então inoperante, sem ter condições de comandar e planejar atos terroristas. Assim como consideravam a possibilidade de que Bin Laden estivesse morto. O superiro de Maya representava essa corrente dentro da CIA  e recomendou à agente que concentrasse seus esforços em descobrir quais seriam as próximas ações da Al Qaeda, quais os novos líderes, etc. Sendo uma heróina solitária, imagem tão cara aos americanos, Maya resolve seguir seus instintos, manobra de modo a retirar o superior do seu caminho e conseguir todo o apoio necessário para encontra Bin Laden. Mays se coloca contra todos e mantem o plano original, criado pós 11 de setembro, qual seja, encontrar Bin Laden vivo ou morto. Por motivos de forças maiores Bin Laden foi executado, assassinado por militares americanos e seu corpo convenientemente lançado ao mar, ao menos foi a informação oficial do governo americano.
A Hora Mais Escura, portanto, é mais um filme a engrossar a longa lista de produções de Hollywood que tentam ou conseguem limpar a barra do governo americano pelos atos de desrespeito à humanidade praticados ao redor do mundo e ao longo de sua história enquanto nação.

Para ler a crítica de Andre Barcinski em sua coluna na Folha de São Paulo clicar no link abaixo:
No link abaixo vocês podem ler uma crítica contrária à aqui apresentada. Compartilhamos o link afim de que vocês possam comparar as duas posições.
 
http://www.cinemadetalhado.com.br/2013/01/critica-hora-mais-escura-zero-dark.html

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