sexta-feira, 3 de abril de 2009

Em Defesa de Kill Bil, Primeira Parte


O cinema é o irmão caçula das demais formas de arte, seu registro de nascimento foi lavrado entre as primeiras décadas do século XX. Esse fato distancia a sétima arte de suas irmãs mais velhas, que surgidas no período clássico da civilização ocidental puderam vivênciar, participar e sofrer suas tranformações no seio das mais diversas sociedades. O cinema ao contrário se vincula apenas à sociedade de massa formada ao longo do século XX e que aponta para uma nova metamorfose no século XXI. Portanto, o cinema se transforma intimamente ligado a essa etapa do capitalismo, em que tudo se volta quase que necessariamente ao consumo extremado. E a meu ver existe apenas um critério nesse contexto de consumismo desenfreado que permite determinar o que é fruto da arte e o que é fruto da indústria pura e simplesmente: saber se o resultado de um dos sete campos da arte é ou não puro entretenimento.
O entretenimento é apenas uma das facetas da sociedade de massa a qual disseminou suas raízes pelos sete campos da arte tal qual um musgo que se lança sobre uma parede ou uma rocha. Desse modo, a indústria do entretenimento atua com o objetivo de transformar as obras de arte em produto de consumo a ser oferecido nas prateleiras das lojas de departamento mundo afora. Podemos então, a partir do que até aqui foi dito, considerar estarmos no limite do que pode ser considerado obra de arte e o que não passa de objeto de consumo. Embora a obra de arte possa ser consumida ela não possui apenas essa característica, ela não é apenas produto, ela também é arte. Ocorre o contrário com aquilo que é apenas produto e que é vinculado à arte pelo simples fato de possuir um determinado formato, assim, a banda Calypso embora seja apenas produto de consumo é chamado de música, ou seja, uma das expressões da arte, por ter características musicais. O mesmo se aplica à literatura, cinema, etc. Para que sejamos mais claros afirmaremos de maneira direta e incisiva que a banda Calypso não é música porque é entretenimento puro.
O cinema está imerso nesse contexto mais do que qualquer outra forma de arte porque sua transformação ocorre simultaneamente às transformações da sociedade em que foi gestado. Assim, lançamos as seguintes questões: o que um filme deve ter para ser considerado obra de arte? Basta ser feito sem patrocínio, sem o apoio de um grande estúdio, estar fora de Hollywood? Como identificar se um filme é entretenimento ou não? Quando ele é experimental é arte, quando é dinâmico é entretenimento? A questão fundamental nesse caso é saber se um filme é entretenimento puro e quando possui algo mais, quer dizer, quando permite reflexões, quando produz mudanças perceptivas, quando altera nosso humor, nossas emoções e por aí vai. Essas questões ficam mais difíceis quando dirigidas a um modo particular de fazer cinema, o modo de fazer cinema de Quentin Tarantino. A discussão aqui abordada gira em torno de um filme específico: Kill Bill. Quando nos referirmos a Kill Bill nos referimos aos dois filmes conjuntamente, como uma única obra.
Para alguns este filme não passa de mais uma produção hollywoodiana, sem qualquer relação com uma perspectiva estética em sentido forte, ou seja, é uma bosta completa, pra falar de modo literal. Por isso mesmo deveria ser relegado, juntamente com seu diretor, Quentin Tarantino, ao círculo das mega produções bancadas pelos grandes estúdios cinematográficos cujo único fim é o lucro certo arrecadado através das bilheterias pelo mundo.
Permitimo-nos discordar dessa posição um tanto quanto apressada, simplesmente porque acusar Kill Bill de hollywoodianismo, o que é o mesmo que considerá-lo puro entretenimento, é uma atitude um tanto quanto anacrônica. Entendemos o termo hollywoodiano como definição de uma espécie de filme de contexto comercial, a forma pura do entretenimento, e nesse caso entenda-se como a reprodução de um padrão de composição do filme (montagem, roteiro, locação, a maneira como as cenas são filmadas, etc.), o que significa seguir um tipo de padrão estético a ser consumido nas prateleiras de locadoras, cinemas e lojas de departamento. O filme nesse caso não consegue ser algo além de um produto a ser consumido. Para fazer um filme dessa espécie basta grana e seguir uma determinada receita. Outro ponto se refere à alienação do diretor e da produção às exigências dos grandes estúdios que os financiam. Queremos defender o filme dessa acusação e mostrar que Kill Bill não se enquadra em nenhuma dessas características expostas do termo hollywoodiano. Finalmente afirmamos ser anacrônica a comparação entre Quentin Tarantino e Jean Luc Godard, que faz parte do seu segundo ataque, caro amigo, ao Kill Bill.

I
Quentin Tarantino insere-se numa tradição cinematográfica diretamente associada à consolidação dos grandes estúdios cinematográfico e da indústria do cinema representada por Hollywood. Essa é a maneira americana de se fazer cinema e a maior parte dos grandes diretores americanos esteve dentro desse contexto. Citamos entre estes os nomes de Stanley Kubrick, Orson Wells, Francis Ford Coppola, Martin Scorcese, Oliver Stone, entre outros. Todos esses diretores ao filmarem seus grandes filmes estiveram sempre vinculados a algum estúdio de Hollywood. Aqui registramos um fato que não impede a criação de filmes que sejam verdadeiras obras de arte, citemos os casos de Spartacus, a trilogia doe O Poderoso Chefão, Cidadão Kane, Touro Indomável, Platoon, todos filmes de alto teor hollywoodiano.
Fazer um filme sob a regência de um estúdio de Hollywood não faz do filme hollywoodiano, ao menos no sentido exposto logo no início desse texto. Kill Bill é um filme de ação recheado de clichês próprios dos filmes comerciais e realmente poderia levar o espectador distraído ou o cinéfilo obcecado pelo plano teórico a desprezar as características particulares do filme e considerá-lo como mais um entre tantos outros filmes de ação existentes. Contudo, Kill Bill encontra-se fora dos limites que abrigam a definição de filme comercial de ação. Isso porque o roteiro não é pré fabricado, há uma intenção por traz de cada cena feita que busca satisfazer as expectativas estéticas do diretor ao mesmo tempo que estabelece um formato que imprime no espectador uma percepção própria do que acontece na tela, destacamos o método de montagem não linear do filme, característica particular de seu diretor. E não só isso mas o fato de estarem em conjunto no filme uma série de linguagens que se coadunam e deslocam o espectador para uma outra maneira de se perceber as cenas de ação. A violência exposta durante Kill Bill não é gratuita, pois serve ao próposito principal do roteiro que é a vingança da Noiva. Cada morte produzida pelo aço da espada Hatori Hanzo da Noiva representa a proximidade de ter saciado o desejo de vingança.
Contudo o desejo de vingança presente em Kill Bill não é aquele desejo banal e muitas vezes sem sentido, enfim, uma justificação para as medidas extremas tomadas pela noiva. Não há questão moral no sentido de que a Noiva é um personagem de bom caráter que é levada à adotar medidas violentas para realizar uma boa ação. A Noiva é motivada pela desejo de vingança sem haver qualquer questão moral envolvida. Existe apenas a violência resultado de um sentimento de vingança. A cena da luta com os Oitenta e Oito Loucos ilustra bem essa perspectiva. A violência se faz presente em estado absoluto e aquilo que é a Noiva e seus adversário desaparece dando lugar àquilo que poderia ser considerado a imagem da vilência, seu rosto, sua face. Por isso a necessidade de uma luta envolvendo tantas pessoas, aquilo que são os idíduos desaparece dando lugar a uma totalidade, à materialização da violência. Assim como ocorre em uma batalha entre exércitos da antiguidade, o nùmero de participantes é tão grande que deixamos de ver indíviduos para ver uma enorme entidade que se forma.
Nessa seqüência de cenas em particular a violência é liberada pelo desejo de matar não os Oitenta e Oito Loucos, mas sua líder, O-Ren-Ishi. Para matar O-Ren é preciso antes matar seus capangas. A Noiva è uma espécie de Hércules às avessas. Ao contrário do mitológico herói grego a Noiva vence seus obstáculos na procura de fazer vingança. Outro ponto que devemos destacar com relação à noção de vingança em Kill Bill se refere à satisfação de um desejo pessoal, enquanto na maior parte dos filmes-receita de ação a motivação da vingança é um desejo de se fazer justiça. Isso porque quase sempre o foco da ação que dá origem à vingança é outra pessoa, geralmente a filhinha, a esposa, os pais ou os amigos, e não o vingador. Em Kill Bill é isso que acontece, a vingança da noiva não vai além disso, não há nada que enobreça essa vingança.
A história é contada de modo fragmentado e as peças se encaixam formando sua totalidade a medida que o filme se desenrola. Não há como saber o que acontecerá na cena a seguir. O espectador é preso ao filme inicialmente pelo simples fato de se encontrar confuso quanto aos acontecimentos, pois não consegue traçar uma linha interpretativa para os acontecimento e nesse sentido a vingança deixa de ser a vingança comum aos filmes de ação. O espectador é violentado pelas cenas, pelos acontecimentos que de início parecem gratuitos. Esse é um dos pontos fortes do filme: uma interpretação so é possível a partir da segunda parte da história (Kill Bill Vol. 2). São dois momentos distintos que se completam. Durante todo o Kill Bill Vol. 1 os acontecimentos pegam o espectador de assalto o tempo todo sem dar explicações, entrando de sola literalmente. O filme acaba e a sensação de estranheza é inevitável. E ela se mantêm até que se assista o Vol. 2.
Quanto as linguagens, que você querido amigo julgou exageradas, digo que são mesmo exageradas, mas o modo como Tarantino as usa imprime-lhes um sentido simples que não compromete o fluxo tranquilo do filme. Não há arestas na montagem dessas linguagens, o que é bastante difícil de se conseguir ao colocar em contato linguagens cinematógráficas tão díspares como os filmes B de artes marciais, o western os filmes de ação etc. E conjugado com esses genêros do cinema todos os clichês que lhes são próprios.
O que está em jogos em todos os filmes de Tarantino sem exceção é a estética pulp, que consiste naquele genêro literário duvidoso (se é que se pode chamar aquilo de literatura), de caráter sensacionalista e bastante underground que teve seu auge nos anos trinta e quarenta. Nesse tipo de literatura a preocupação é a venda dos livros e para tal a linguagem utilizada era bastante simples e refletia o cotidiano americano conjugado a histórias fantásticas muito em moda naquela época. Quentin Tarantino, pode-se dizer firmemente, introduziu esse elemento de modo fantástico no cinema e Kill Bill é o ápice dessa influência, além de revelar a maturidade desse diretor.
Desse modo os filmes B de artes marciais constituem um elemento pulp por contar com recursos parcos para produção dos filmes e por não ter como objetivo construir uma obra de arte. Diferentemente de Tarantino que insere essa estética no filme de modo a acentuar a dinâmica da violência presente no filme. Do mesmo modo utiliza a linguagem da animação para contar a história de O-Ren Ishi com estilo próprio aos desenhistas mangás. Cada elemento pop-pulp utilizado na montagem da sequência de cenas presentes no filme é encaixada com precisão e refletem um roteiro elaborado bem como uma filmagem cuidadosa. Que revela pouco interesse com a questão experimental, o que significa apenas que o filme não é experimental.
A ação de Kill Bill e a violência por ela expressada afirma sua identidade própria o que o afasta do padrão presente nos filmes de ação comercial produzidos em larga escala pelos estúdios de Hollywood. Portanto o termo hollywoodiano ou blockbuster não se aplica a Kill Bill, que embora não seja um ícone do cinema conceitual, que não compartilhe do ideal experimentalista tão em moda entre os cinéfilos de plantão, ainda sim é um grande filme, pois possui uma linguagem própria, livre de rótulos.

II

Se há uma Verdade em cinema, uma unanimidade, essa deve ser que Jean Luc Godard é incomparável, mesmo que Nelson Rodrigues já nos tenha avisado de antemão que a unanimidade é burra. Realmente não é possível determinar parâmetros para os filmes de Godard. O diretor francês não apenas dispõe de um etilo de composição bastante particular no que toca o experimentalismo como é referência para cineastas dos quatro cantos do mundo. Em Glauber Rocha, por exemplo, é notória a influência de Godard, além claro de termos vários registros tanto escritos quanto filmados do diretor brasileiro pagando o maior pau para a obra do diretor francês.
A meu ver, a contribuição de Godard ao cinema está no alto grau de experimentalismo de suas filmagens que arrebatam o espectador de forma incisiva, causando todo tipo de reação, que vai da revolta e mal estar ao delírio e admiração. Isso porque assistir um filme de Godard exige certo apuro do espectador, que não pode assistir ao filme sem conhecer alguma coisa do cinema, e digo conhecimento de caráter técnico e conceitual. Os filmes de Godard se dirigem a um público específico preocupado com a linguagem cinematográfica, preocupado em experimentar, ou seja, são eles diretores ou estudiosos do cinema enquanto arte.
Seguindo esse raciocínio, como fazer uma comparação entre o cinema de Godard e de qualquer outro diretor sem que com isso terminemos por considerar um dos lados como expressão maior do cinema e outro uma bosta completa? Em nosso caso específico, como comparar Godard a Tarantino? O resultado está previsto na pergunta anterior e foi o que aconteceu quando se tentou analisar o cinema, o jeito de se fazer cinema enquanto arte, a partir da perspectiva godardiana. Como dissemos, Godard é único, sem que com isso seja especial ou divino, e exigir de um diretor que para alcançar qualidade em seus filmes deva se aproximar o máximo daquilo feito pelo diretor francês não é mais do que se alienar a uma única perspectiva estética.

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